Netania Gomes, a pernambucana que aos dez anos sabia que o mundo era seu país, e preparou sua viagem, mesmo quando tudo era contra sua vontade

“Eu moro em Dublin há sete anos, vim de uma cidade que fica há quarenta minutos de Recife chamada Itapissuma com vinte e cinco mil habitantes. Sou de uma família bem simples, humilde mesmo. Acho que uma recordação bem interessante, é que recentemente eu fui ao Brasil, e reencontrei uma professora de escola, que na realidade não era minha professora diretamente, ela dava aulas em uma sala, ao lado da minha. E ela me disse: Netania, eu sempre achei que você não era daqui, sempre pensei que você era de fora. E eu era mesmo.
Eu sempre queria viajar. Eu sempre quis sair. Eu não sabia o porquê, nem para onde. Na quarta série na escola, eu tinha uns dez anos mais ou menos. E foram dar uma palestra. Eram pessoas do Rotary Club. Eu não me lembro nada da palestra. Eu só me lembro que ele falava de sair, conhecer novas culturas. Eu não entendia nada, eu fiquei com aquilo na cabeça. É possível sair do Brasil? Eu posso sair do Brasil? Que legal! Eu quero isso! Eu quero sair de Itapissuma.
Cheguei em casa e pedi para minha mãe comprar uma mala e disse: Se prepara que eu vou sair do Brasil e arruma uma mala para mim. Eu vou sair daqui, eu vou sair do Brasil. Eu não fui embora com dez anos, eu não ganhei nem a mala. A mala, na realidade, eu ganhei quando me graduei em turismo na faculdade. Eu achava um anel de formatura uma coisa muito cara. Minha mãe queria me dar um. e eu pedi ela me desse uma mala, seria melhor que um anel. A mala inclusive, eu tenho até hoje.
Sou extremamente realista, eu sei diferenciar realismo de pessimismo. Acho que vale a pena frisar isso. Minha família não tinha grandes posses. Erámos simples, a vida era simples. Não faltava nada, não passamos necessidades. Mas não tínhamos luxos. Como lidar com uma menina de dez anos que de repente descobre que o mundo é o seu lugar? Os meus pais me davam apoio. Da forma deles, sem dizer não, sem colocar barreiras. Só não poderiam dar apoio financeiro, mas isso eu do meu jeito ia me virando.
Tive um professor, que me dava aulas de geografia e história. Ele foi meu primeiro contato com uma pessoa que me mostrava que era sim possível ser diferente. Na minha cidade todo mundo terminava o curso colegial e buscava ser ou professor ou contador. Eram profissões que ofereciam uma estabilidade. Mas é uma estabilidade rasa. Não era essa vida que eu queria. Esse professor, sonhava fazer um doutorado, queria viajar, ele incentivava os alunos a irem além.
Eu comecei a ir além. Mesmo estudando em uma escola muito simples, eu queria ser mais. Mesmo que as pessoas pensassem o contrário. Dentro do meu terrível senso de realidade, sabia que seria difícil, mas não impossível. Entrar em uma universidade federal? Complicado. Não tinha dinheiro para um cursinho. Uma particular? Como pagar as mensalidades? Sinceramente eu aspirava ser mais.
Uma outra professora me incentivou prestar vestibular para história ou geografia. Eu pensava que assim eu poderia viajar. Sim, o desejo de viajar e conhecer o mundo continuava. Foi quando apareceu o Programa Universidade para Todos (Prouni), que é um programa do Ministério da Educação, criado pelo Governo Federal em 2004, que concede bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em instituições privadas de ensino superior. Eu fiz parte do primeiro Prouni.
Prestei para história. Mas não tinha nota o suficiente e não consegui entrar. No ano seguinte novamente, prestei a federal e também na Universidade de Pernambuco. A Universidade de Pernambuco não tinha o curso que eu queria, mas mesmo assim prestei. E na Federal, eu passei somente na primeira fase. Porém, a Faculdade Mauricio de Nassau no Recife, deu bolsa de estudos para os oitenta melhores alunos da primeira fase do vestibular da Universidade Federal que faziam o Prouni. Eu estava entre eles. Porém, a Mauricio de Nassau não tinha o curso para o qual eu prestei vestibular. Tive que optar por outro, se eu quisesse ficar com a bolsa. Optei então por turismo. Meu sonho era viajar, nada mais correto que me formar em turismo então, ainda mais que era de graça.
Eu entrei na faculdade e alguns problemas começaram aparecer. Apesar de estudar de graça, eu teria um gasto. Precisava chegar em Recife, morando em Itapiçuma isso não seria uma tarefa tão fácil. São mais ou menos 40 km, quase duas horas de ônibus. Meus pais também, infelizmente não poderiam me ajudar pagando a condução. E como se não bastasse isso tudo, minha cidade, apesar de muito pequena, tinha três comunidades onde os traficantes estavam em conflito. Voltar a noite para casa era um pouco perigoso, uma vez que minha casa ficava entre duas dessas comunidades.
Eu resolvi o problema da condução arrumando um emprego em uma autoescola, onde ganhava o suficiente para cobrir minha condução. Pegava três ônibus para voltar para casa, sendo que o terceiro, era o último ônibus. Duas vezes, aconteceu de eu perder o terceiro ônibus, e para não dormir na rua, eu não descia do segundo ônibus. Ia até a garagem da companhia, e falava que a culpa de eu não ter pego o último ônibus era deles. Fazia uma grande confusão e o responsável pelo turno da noite me levava para casa. A contragosto, mas levava.
Meu pai ia me esperar no ponto e de lá me levava para casa na garupa da bicicleta, apenas para que eu não caminhasse aqueles quinze minutos que separavam a minha casa do ponto de ônibus a noite. Era realmente perigoso, meu pai era preocupado, mas eu não achava aquilo certo. Conversei com um tio meu, que morava perto do ponto, então passei a ficar na casa dele durante a semana. Dormia em um canto da cozinha, em um cama que era sofá durante o dia.
E como o inglês entra na minha vida? Eu entrei na faculdade quinze dias depois que as aulas começaram. Por um problema da burocracia do Prouni e da faculdade. Eu já entrei na faculdade com medo. Pois na minha cabeça, todo mundo que estava lá era melhor que eu. Tinham tido mais estudo, e um monte de coisas que eu julgava ser muito importante. No meu primeiro dia na faculdade, na minha primeira aula eu fui ter aula de inglês. O que eu sabia de inglês? Só o Verbo ‘to be’ que aprendi anos após anos na escola do estado. Não sabia nada.
E o professor deu um exercício. Uma coisa do tipo seu nome, sua profissão, quantos anos você tem e etc. Eu achava uma palavra chave na questão e mais ou menos sabia do que se tratava. Mas a resposta, eu escrevia em português mesmo. Não tinha gramatica ou vocabulário para isso. O professor, parou do meu lado. Viu aquilo e perguntou: O que você acha que está fazendo? Isso por um acaso é aula de português? Eu não tinha o que dizer. Ele me deu uma bronca.
Eu fiquei sem reação, sai da sala, fui para uma escada e chorei. Uns quinze minutos. E coloquei uma coisa na minha cabeça: Vou falar inglês. Ah sim. Vontade de desistir nem passou perto. Nunca desisto. Na minha família, só duas pessoas entraram na universidade Tudo era contra minha vontade. Mas, minha vontade era maior. E hoje me sinto um exemplo na minha família.
Eu já não trabalhava mais na autoescola, estava agora na prefeitura do Itapissuma. Não que ganhasse muito bem, mas poderia sim, investir em minha formação. Fui fazer inglês no SENAC do Recife. Eu trabalhava até meio dia na prefeitura, estudava inglês a tarde, ia para faculdade a noite e depois para casa. Oito ônibus e uma van todos os dias. Uma loucura, mas com um objetivo. O curso de inglês do SENAC era perfeito. Isso me abriu portas, foi meu diferencial para mais tarde trabalhar na secretária de turismo do Recife e depois na secretária do estado
E na secretária de turismo do estado que a Irlanda começou a aparecer. Já estava trabalhando lá e através de amigos em comum conheci meu namorado, o Viktor. Um Letão que morava na Irlanda. Um colega de trabalho meu dividiu apartamento com ele aqui em Dublin e nos apresentou. Foi amor a primeira vista? Foi. Mas nos conhecemos em um aniversário de uma amiga de trabalho.
Isso foi em novembro de 2008, e começamos a nos conversar por telefone, com uma frequência quase diária. Em três meses, estávamos nos falando só em português. O Letão aprendeu português sim… Em fevereiro, do ano seguinte, no Valentines Day, ele foi em uma capela que guarda os restos mortais de São Valentin na Irlanda, tirou uma foto com uma foto minha do lado e me mandou, desejando feliz dia dos namorados. Naquela hora caiu minha ficha: Gente…eu tô namorando!
Aquilo foi o meu start para definitivamente começar a pensar no projeto Irlanda. Com um ano e pouquinho de namoro nos vimos menos de quinze dias. Era um namoro a distância literalmente. Eu era só uma funcionária pública. E estava deixando morrer aquele sonho de sair. O Viktor então me chamou para morar junto. Ele disse que se eu quisesse sair do Brasil ele me ajudava. Eu como já disse, não perco oportunidade. Pedi ajuda para meu pai, minha mãe achou que era loucura, comprei minha passagem em umas dez vezes no cartão do meu pai, peguei dinheiro com uma amiga, em 2009 desembarquei aqui para estudar no Seda College.
Não foi fácil. O Viktor e eu alugamos um pequeno flat, eu não tinha emprego fixo. No meu primeiro ano trabalhei em todos os empregos que os recém chegados do Brasil trabalham aqui. Fui kitchen porter, au pair, housekeeper e arrumadeira de hotel. Até que no meu primeiro verão em Dublin no Seda College, onde eu estudava, surgiu uma oportunidade de cobrir as férias de uma pessoa. Eu não deveria vender cursos, deveria só ajudar os alunos, ser um pós venda de cursos. Acontece que acabei tentando vender cursos. Fui um sucesso. Vendi muitos cursos, somente em três semanas de trabalho. E me convidaram para ficar.
Hoje, não sei se trocaria a Irlanda por outro país, talvez, sim. Mas sei que meu desejo de voltar ao Brasil é praticamente inexistente. Aqui sou feliz, realizada profissionalmente. Tenho consciência que mesmo trabalhando no que amo, como faço aqui, no Brasil, não teria condições de dar aos meus pais, o conforto que posso dar trabalhando aqui de Dublin. Tudo isso só aconteceu comigo apenas por que eu não pensava muito. A oportunidade aparecia, e eu aproveitava. Não percam suas oportunidades.”
Texto: Léo Pinheiro
Contato: www.leopinheirofotos.com
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Nossa….
Linda a sua história lenbro de tudo isso que vç passou
Feliz por vc.
Vç merece